Ana Carolina Piassentini/ outubro 8, 2018/ Indicações Bibliográficas

Ensaio Sobre a Cegueira – José Saramago, 1995.

“Os cépticos acerca da natureza humana, que são muitos e teimosos, vêm sustentando que se é certo que a ocasião nem sempre faz o ladrão, também é certo que o ajuda muito. Quanto a nós, permitir-nos-emos pensar que se o cego tivesse aceitado o segundo oferecimento do afinal falso samaritano, naquele derradeiro instante em que a bondade ainda poderia ter prevalecido, referimo-nos o oferecimento de lhe ficar a fazer companhia enquanto a mulher não chegasse, quem sabe se o efeito da responsabilidade moral resultante da confiança assim outorgada não teria inibido a tentação criminosa e feito vir ao de cima o que de luminoso e nobre sempre será possível encontrar mesmo nas almas mais perdidas. Plebeiamente concluindo, como não se cansa de ensinar-nos o provérbio antigo, o cego, julgando que se benzia, partiu o nariz. A consciência moral, que tantos insensatos têm ofendido e muitos mais renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não foi uma invenção dos filósofos do Quaternário, quando a alma mal passava ainda de um projecto confuso. Com o andar dos tempos, mais as actividades da convivência e as trocas genéticas, acabámos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca.”

Ensaio sobre a Cegueira é um romance de ficção escrito por José Saramago, que narra os meandros de uma história onde toda uma população é acometida por um tipo de cegueira desconhecida, visto que ao invés de terem a vista mergulhada no escuro, encontram-se mergulhados numa luminosidade branca. Assim, o mal é nomeado de mar de leite. A cegueira se inicia em um único indivíduo, de repente, sem qualquer motivo aparente e vai se alastrando até atingir toda a população, exceto a mulher do médico oftalmologista que examinou o primeiro cego. Num primeiro momento, como medida de contenção, o governo arbitrariamente decide encarcerar os primeiros infectados e aqueles com quem eles tiveram contato. Eles são levados para um antigo manicômio, sem qualquer estrutura, e são colocados em regime de isolamento. Ninguém entra para auxiliá-los. Os possíveis infectados são colocados em alas separadas dos que não enxergam, com exceção da mulher do médico que mente que está cega para ficar junto de seu marido. Sendo assim, os cegos precisam rapidamente se adaptar e aprender a viver sem o uso deste sentido. No processo de adaptação, ela se transforma numa líder que orienta e tenta manter minimamente a ordem no grupo.

“Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais.”
(mulher do médico)

Boa parte da narrativa acompanha como se desenvolve essa comunidade que é fortemente vigiada pelo exército para que ninguém saia, numa tentativa fracassada de impedir que o mal se alastre. O único suprimento que recebem de fora é comida três vezes ao dia que quase sempre vem insuficiente ou nem chega. É possível manter uma certa ordem enquanto o número de encarcerados é relativamente pequeno, mas, em dado momento, o manicômio recebe cerca de 300 pessoas infectadas de uma vez, número superior à quantidade de leitos existentes. Sem respeitar a divisão feita anteriormente, onde os cegos ficavam de um lado e os possíveis infectados do outro, há uma enorme confusão para que todos se acomodem. Neste momento, todos ficam cegos, exceto a mulher do médico.

As condições sub-humanas as quais aquelas pessoas são submetidas deixam-lhes totalmente à mercê dos seus instintos e da tirania daqueles que se julgam mais fortes. Nesse ponto somos constantemente confrontados com a questão: o que nos torna humanos? O fato dos personagens não serem tratados pelos seus nomes enfatiza essa questão. Perde-se a visão, perde-se a identidade, suas especificidades. Uma única característica é destacada e é por ela que passam a se reconhecer. Pouco a pouco o grupo passa a viver praticamente como animais, em completa sujeição aos seus instintos. A mulher do médico, sendo a única que pode ver, sente o fardo e a responsabilidade de ser os olhos daqueles que não mais possuem os seus próprios. Sofre não só por sentir, mas em ver a degradação a que estão submetidos.

Após um incidente, percebem que não estão mais sob vigilância e ganham a liberdade acreditando que seu calvário terminaria. Encontram um mundo pós-apocalíptico com cegos vagueando a esmo, lutando pela própria sobrevivência. O mundo se amplia melhorando levemente as possibilidades, porém, a mulher do médico é  obrigada a ver horrores ainda em maior proporção e sente que sua responsabilidade perante seu pequeno grupo aumenta. A solução, a promessa de alívio ainda não se apresenta no horizonte. Muitas mortes ainda se fazem necessárias.

“Quando é que é necessário matar, perguntou-se a si mesma enquanto ia andando na direcção do átrio, e a si mesma respondeu, Quando já está morto o que ainda é vivo.”
(mulher do médico)

A história é narrada em terceira pessoa, sendo o narrador portanto, onisciente. A narração é feita de tal maneira que nos leva a sofrer junto com a mulher do médico, como se nós, os leitores, também fôssemos mais um par de olhos para testemunhar todo o horror no qual aquelas pessoas se encontram. Quando nos colocamos neste papel, fica ainda mais evidente a metáfora com a nossa sociedade contemporânea, onde em tempos de crise, temos “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. Trazendo para o individual, é preciso ponderar e olhar para dentro de nós buscando decifrar o que dentro de nós está cego, o que precisa morrer para que enfim possamos enxergar uma nova realidade. Na história, velhos laços se desfazem, outros novos surgem. Amizades improváveis se desenvolvem entre os personagens permitindo que sobrevivam ao período difícil de crise. Uma boa analogia para percebermos que precisamos abrir mão de velhos hábitos, daquilo que nos define no passado para que o novo possa se instalar.

“O medo cega, disse a rapariga de óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos.”

A escrita se desenvolve de maneira bastante peculiar. Os diálogos são inseridos no meio do texto, sem o uso do travessão, sendo sinalizados apenas pela letra inicial maiúscula. O livro foi publicado em 1995 e traduzido para diversas línguas. No Brasil o livro foi publicado pela Companhia das Letras e, por solicitação do autor, foi mantida a ortografia vigente em Portugal, o que pode causar certa estranheza para nós, leitores brasileiros, porém, nem de longe, atrapalha a experiência.

Para mim foi uma leitura bastante difícil em muitos momentos, mas igualmente difícil soltar o livro antes da última página. Muito útil e necessária para refletirmos acerca da nossa natureza humana e como, em potência, somos todos feitos de luz e sombra.

“Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”.
(Mulher do médico)

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